Da arte de ocupar o vazio:
a série The New Brazilian Flag
por Lilia Moritz Schwarcz (USP/Princeton)
Tudo começou no início de 2018, quando Raul Mourão saía de uma feira de arte realizada nos Piers 92 e 94, às margens do rio Hudson, em Nova York. Raul Mourão notou uma bandeira dos Estados Unidos da América presa a um mastro, mas sem as estrelas que fazem parte do famoso símbolo norte-americano. Na verdade, por conta do vento, a flâmula havia se enrolado no próprio mastro e, vista naquela situação, tudo parecia indicar que as estrelas haviam simplesmente sumido. O artista realizou então um registro visual simples, em vídeo, destacando a bandeira estadunidense sem as estrelas, encobrindo e revelando uma lua fina que aparecia mais ao fundo na imagem. Olhar a bandeira por exclusão – sem as estrelas – era metáfora fácil, mas necessária, para pensar sobre o que andava acontecendo nos EUA de Donald Trump, mas também para refletir acerca do que ocorria e ocorre aqui no Brasil.
De toda maneira, a ideia veio ligeira; já de volta ao país e enquanto andava pela Lapa, Mourão achou por bem utilizar o mesmo recurso e interferir na bandeira nacional. Nesses tempos em que Jair Bolsonaro (sempre sem partido) tem feito um uso programático, até farsesco, do auriverde pátrio, sequestrando símbolos diletos, entre eles a bandeira e suas cores verde e amarela, nada como fazer a “versão à brasileira” da visão que o artista teve em Manhattan. O artista comprou uma bandeira, dessas que se vendem em qualquer lojinha de bairro, introduzindo um corte bem na parte em que se encontravam, originalmente, o dístico “Ordem e Progresso” e as estrelas que correspondem aos diferentes estados do país. Com esse buraco recortado, a bandeira nacional aparecia agora não apenas sem as estrelas que a compõem, mas rasurada e violentada: o vazio sinalizava a ausência dos estados (e do Estado): da federação e da própria república.
A bandeira, devidamente apresentada na sua incompletude, com essa fenda ostensiva, foi então disposta na parede do ateliê do artista. Ao mesmo tempo, foi virando um trabalho em processo. Mourão improvisou um mastro de madeira, que por sua vez foi instalado, junto com a bandeira, na fachada do prédio onde funciona seu ateliê. Isso tudo na véspera do carnaval.
Como as ruas da Lapa já estavam em clima de Momo, o artista saiu usando a bandeira como se fosse uma fantasia, de forma que, ela e seu artista criador, foram virando, eles próprios, uma performance artística. Essa era também uma intervenção política e cultural, uma vez que significava desfilar enrolado num objeto nacional, mas (agora) também de arte, em plena sexta-feira de pré-carnaval.
Vale lembrar que em 2018 estávamos nos tempos da curta presidência de Michel Temer, o qual, a essas alturas, já havia dado um golpe de Estado, participando ativamente para o impeachment de Dilma Rousseff, que ocorreu em 31 de agosto de 2016. A sensação latente era de profunda suspeita em relação ao ambiente político nacional, e de muito receio com relação à saúde da democracia brasileira. A farsa que atribuiu à então presidente um “crime de responsabilidade”, bem como o triste espetáculo performado pelos congressistas que votaram a favor do impeachment, sinalizava para o que viria a ocorrer logo adiante: um governo formado por políticos golpistas, misóginos, racistas e favoráveis à ditadura militar. A sessão da Câmara apresentou um espetáculo degradante de “familismo”, com os deputados votando por suas mães, esposas, filhos e filhas, por suas cidades, religiões, mas nunca em função do tema em pauta.
Depois do impeachment da presidente, cujo processo se iniciara em dezembro de 2015, o Brasil saiu menor; muito menos republicano. Já Raul Mourão resolveu “vestir, de vez, a bandeira”.
E foi em meio a esse caldo de desapontamento coletivo que o projeto The new Brazilian flag ganhou corpo. Naquele carnaval estranho de 2018, Raul Mourão resolveu pendurar uma bandeira nacional destituída de seu centro circular, nos Arcos da Lapa, com o samba correndo solto. Por lá passavam turistas, camelôs, foliões, mas a bandeira içada pelo artista continuava estranhamente intocada, como se tivesse sido oficialmente hasteada para dar início às festividades.
Na concepção de Mourão, tratava-se de uma intervenção artística que encostava no limite da ilegalidade, ou era, no mínimo, um trabalho não autorizado pelos, assim chamados, “órgãos competentes”. Isso porque a bandeira foi parafusada num marco arquitetônico do bairro, onde quatro furos vistosos perfuraram as paredes, caracterizando uma sorte de agressão ao espaço público.
O desacato não era, entretanto, acidental – era proposital. Fazia parte das intenções de Mourão justamente entender até onde ia a “tolerância da polícia carioca” diante do que é em geral definido como “vandalismo”; numa clara leitura enviesada e ideológica de alguns trabalhos de arte que usam o espaço público como lócus da produção de arte. A palavra “vândalo” diz originalmente respeito aos povos que invadiram a “civilização romana”, destruindo-a, e que hoje são evocados no sentido de destacar a atuação de pessoas que não respeitam a lei, as regras e tampouco o espaço público.
O tema é espinhoso e tem sido objeto de amplo debate e embate não só no Brasil como internacionalmente. A quem pertence o espaço público? Quem ou o que devemos celebrar e como? Monumentos nascem para serem contestados e esse tem sido o destino de várias esculturas dispersas pelo Brasil, e que reforçam com suas presenças a mesma história colonial, europeia e masculina. Reforçam também uma certa “patriotada”; atitude que difere do “patriotismo” por conta da postura acrítica adotada.
Pois bem, Mourão imaginava “causar”. Pensava que a fiscalização da prefeitura iria interagir com ele, com a ação resultando em uma obra de vídeo-fotografia. Ledo engano; nenhuma autoridade chegou a se incomodar com o objeto intruso. A instalação resistiu à sexta e a parte do sábado de carnaval. Depois disso, sumiu. Mesmo assim, a sua base de metal foi parar no prédio do ateliê do artista e dessa maneira virou memória e registro do novo trabalho.
A obra também se transformou num mutirão. Raul Mourão teve então a ideia de inventar diferentes formatos (pequenos, médios e grandes), criar vários suportes e desenhos, com a bandeira brasileira surgindo não só recortada como multiplicada, tendo seus elementos originais devidamente deslocados e embaralhados.
Misturada, subvertida e ganhando novas perspectivas, com a subtração de diversas partes da flâmula nacional, a bandeira brasileira nunca esteve tão viva e afastada dos usos políticos que o atual governo tem feito dela.
O trabalho também ajudou a apoiar as atividades do Rato BranKo, que nasceu em 2011 na cidade do Rio de Janeiro por ocasião da exposição Cabelo Apresenta Mc Fininho e Dj Barbante no Baile Funk (Gentil) Carioca, que contou com a apresentação de músicas, pinturas, instalações, objetos e vídeos de Cabelo, sob a curadoria e produção de Raul Mourão.
Ambos os artistas contam como o ponto de partida para a ação deu-se em janeiro de 2016, quando Mourão e Cabelo se tornaram vizinhos no prédio de ateliês Lapa 71, situado na Rua Joaquim Silva, no Rio de Janeiro. A partir daí, estabeleceram uma parceria de trabalho, com o ateliê Rato BranKo sendo inaugurado no dia 3 de março. O projeto passou a se definir, então, como um laboratório experimental focado na realização de filmes, músicas e objetos de arte, conectado aos ateliês individuais dos artistas.
O objetivo era, por sua vez, dialogar com uma audiência não especializada, mais ampla, procurando atrair o público de rua e os passantes. Arte-documentário, arte-notícia, arte-jornalismo são alguns conceitos que já haviam sido utilizados nos trabalhos da dupla: juntos e separadamente.
E, assim, Mourão decidiu elaborar uma nova ação, que consistiu em fazer uma bandeira em tamanho menor, sem o centro ovalado, e com uma tiragem de 666 exemplares, os quais custariam 666 reais cada, com a renda sendo destinada às atividades culturais do Rato BranKo.
Seis é o número do homem, pois Deus o criou no sexto dia (Gênesis 2:26-31). Já o número 666 tem recebido significados diferentes e por vezes contraditórios, quando não opostos. De um lado, representa uma trindade humana imitando a trindade divina: Pai, Filho e Espírito Santo. Sendo assim, três vezes seis deve referir-se a uma estrutura humana que se apresenta como a trindade divina. De outro lado, porém, 666 é também o número da besta ou a marca da besta, de acordo com a tradição cristã.
A explicação mais conhecida encontra-se no Apocalipse, o último livro da Bíblia, no capítulo 13, versículo 18, que afirma: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.” O número 666 foi na antiguidade relacionado a Nero, o imperador de Roma que mais perseguiu os cristãos. Por isso, os adeptos dessa religião passaram a chamar o imperador de “besta”. Todavia, para que não fossem reprimidos por afrontar Nero, resolveram usar essa espécie de código secreto na hora de se referir ao tirano. Ou seja, os fiéis relacionaram as letras hebraicas que formavam o nome do imperador a números. Além do mais, o versículo do Apocalipse não pretendia atingir apenas a Nero, mas a todos os déspotas.
Por fim, dizem os teólogos que o 6, citado na Bíblia, é um número imperfeito e até antagônico ao bem. Sendo assim, o fato de estar repetido três vezes acabou por significar a plenitude da besta.
Embates teológicos à parte, o certo é que, para Mourão, o 666 estava mesmo relacionado à besta brasileira, hoje vestida de presidente. O trabalho vinha assim com história e ganhou nova história. Apareceu em outras exposições, fez parte do cenário do show da Adriana Calcanhotto, foi capa de livro e ilustração de jornal, e surgiu destacado na parede da casa de Caetano Veloso quando o cantor deu um show remoto em 2020.
Esse é, portanto, um trabalho que surgiu antes de Bolsonaro, antes da pandemia, antes do isolamento social. No entanto, ganhou novos sentidos e espalhou-se nesse contexto de crise econômica, política, social, moral e da saúde em que se encontra a sociedade brasileira. Além do mais, com a velocidade das mídias digitais, a bandeira dessa forma recortada passou a circular nas redes sociais, gerando uma imensa empatia e adesão do público em relação ao trabalho. Aliás, The new Brazilian flag segue circulando, tal qual bandeira ao vento.
Sobre bandeiras e símbolos: o cheio e o vazio
Bandeiras não são objetos inocentes. Fazem parte de um arsenal simbólico especialmente criado para produzir “comunidades imaginadas”, na feliz e conhecida expressão do sociólogo Benedict Anderson. Ou seja, uma nação é sempre um território desmembrado e sem alma que só ganha consistência a partir do sentimento e do afeto que construímos e que se encontra embutido e expresso pelos símbolos pátrios: bandeiras, hinos, dísticos e brasões. É dessa maneira que um povo se reconhece como único e aprende a importância do pertencimento a uma nação. A operação é em si bastante artificial, mas o resultado procura normalizar e até naturalizar o que é efeito da história e da manipulação de um sentimento de pátria.
E no caso brasileiro não seria diferente. Nação jovem, durante largo tempo dominada pela metrópole portuguesa, o fato é que na colônia não era fácil encontrar alguém que se definisse como brasileiro ou brasileira. Talvez por isso, desde o começo dessa história, quando o Brasil era ainda Brazil, ou uma América portuguesa, até a época do Reino Unido, em 1815, o país contou com uma sucessão de bandeiras pátrias.
Enquanto o Brasil permaneceu como colônia lusitana, a bandeira era a mesma para todos os territórios pertencentes ao rico e vasto Império português. Foi apenas quando o Brasil virou Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves que se estabeleceu pela primeira vez uma bandeira oficial, especificando-se que o brasão de armas do Reino do Brasil deveria ser composto por uma esfera armilar de ouro em um campo azul.
Entretanto, foi somente depois da independência de 1822 que foi criada a primeira bandeira oficial do Brasil. Entre setembro e dezembro daquele ano, o pavilhão pessoal do antigo Príncipe Real do Reino Unido — composto por um losango amarelo em campo verde, tendo ao meio o brasão de armas do príncipe e criado pelo artista francês Jean-Baptiste Debret a partir de um pedido explícito de D. Pedro – passou a representar o novo Império. Mas foi com a sagração de D. Pedro I como imperador do recém-independente Brasil que a coroa real que ornava o brasão foi substituída pela coroa imperial. O decreto que instituiu a bandeira oficial data de 18 de setembro de 1822, comprovando o quão “urgente” era a criação desse símbolo para o país agora autônomo.
Vale a pena destacar que, apesar da autonomia política, as cores ainda lembravam o passado colonial e monárquico do novo país. Afinal, o verde era a cor dos Bragança e o estandarte pessoal de Pedro II de Portugal. Já o amarelo simbolizava a cor da casa de Habsburgo-Lorena, ramo de onde descendia a imperatriz Maria Leopoldina. Como se vê, a bandeira nacional nasce escondendo sua origem real. Na verdade, a ideia de que o verde da bandeira alude às “nossas matas” e o amarelo ao “nosso ouro” não corresponde à realidade e à homenagem que o estandarte comportava, ainda em 1822.
Já o artista Debret, acostumado a lidar com o Estado francês napoleônico, procurou inspiração no Primeiro Império francês para conceber o losango central da bandeira. Essa era também uma referência disfarçada à maçonaria, organização da qual Pedro I fazia parte, teoricamente, de maneira secreta.
Bem que Ruy Barbosa tentou emplacar a ideia de um desenho inspirado na bandeira dos Estados Unidos; país que nesse contexto fazia moda no que se refere ao republicanismo do continente americano. O político brasileiro propunha que a flâmula apresentasse treze listas horizontais, alternando em verde e amarelo, tendo no canto superior, junto à talha, 21 estrelas em campo azul. Essas corresponderiam aos estados brasileiros.
Esse modelo de bandeira vingou, porém, por apenas quatro dias, sendo inclusive hasteada no navio Alagoas que levou a ex-família imperial brasileira ao exílio. Ela ficou assim conflagrada e retida no passado.
Já o Marechal Deodoro, um monarquista de quatro costados, sugeriu que a nova bandeira republicana guardasse o formato e as cores imperiais, e que apenas fosse eliminada a coroa, que antes aparecia no centro da flâmula em homenagem aos imperadores do Brasil. As estrelas correspondentes aos estados seriam, porém, mantidas. O decreto foi emitido no dia 19 de novembro de 1889, mais uma vez mostrando a pressa, e com ela a importância da criação de símbolos que representassem o novo regime político, a partir de então vigente. Acrescentou-se ainda a legenda “Ordem e Progresso” por sobre a faixa branca, bem como oficializou-se que as letras seriam estampadas em verde. Tais palavras de ordem foram por sua vez elaboradas pelo exército brasileiro, nesse contexto muito influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo que aparece expresso no dístico. A inscrição era uma forma abreviada do lema político do francês Auguste Comte, que dizia: “O amor como princípio e a ordem como base; o progresso como meta.”
E assim foi feito, com a bandeira brasileira ganhando uma forma consensual, só se alterando o número de estrelas, no caso da alteração geográfica e política dos estados que compõem a federação.
Foi também por sobre essa bandeira que Raul Mourão criou sua série, que “subversivamente subverte” o que parece por demais assentado. A bandeira vira arte explorando-se e desarticulando seus elementos constitutivos e silenciando sobre o dito: “Ordem e Progresso”.
Diferente da frase alvissareira, evolutiva e que aposta num único tipo de progresso que age como seta do tempo – sempre direcionada para a frente –, o trabalho de Raul Mourão destaca nossas incompletudes e ausências. Vira e cresce como metáfora do vazio. O vazio institucional; o vazio da incerteza, da falta de estrutura, da violência do dia a dia, da insegurança e do medo.
Isso porque não era apenas a “saúde da democracia” que andava em jogo no Brasil. Ninguém poderia saber, mas também a “saúde física” dos brasileiros iria entrar em estado de emergência, a partir de março de 2020, por causa da pandemia do coronavírus. Não que as notícias da Covid-19 deixassem de circular pelo Brasil desde finais de 2019. Mas, naquele momento, boa parte dos brasileiros preferiu esquecer e tentar virar a página. Era muita notícia ruim ao mesmo tempo.
A série The new Brazilian flag veio assim cobrir um vazio existencial. Ela nos convida e recruta a sair da passividade diante desses tempos tão distópicos e retrógrados em que vivemos. Hora de fazer desse vazio um copo cheio. Hora de sair fantasiado de bandeira e recuperar os símbolos sequestrados. Hora de intervir na bandeira para de alguma maneira refundá-la.
Hora de criar completude por sobre o vazio.